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AINDA VIDA

Largamente experimentada pela história da arte europeia, as pinturas do gênero natureza-morta frequentemente apontavam a finitude do tempo. Que os períodos acabam. Quando terminanos o ano de 2021 talvez seja oportuno lembrar queVanitasé um de seus principais temas: data do final do século XVI, persiste por todo o século XVII – o seu período áureo – e adentra o início do século XVIII. Em Vanitas, caveira e  ossadas figuram como elementos centrais da composição em que são representadas ao lado de outros objetos. Da beleza (espelhos de mão, joias, e outros adornos ligados ao feminino); da riqueza (moedas de ouro e prata e itens valiosos em geral); da sabedoria (livros, máquinas e instrumentos científicos); das artes (quadros, esculturas, máscaras e instrumentos musicais); e dos jogos de azar (os dados e as cartas de baralho de jogo). As flores murchando e os frutos apodrecendo eram motivos que tanto simbolizavam a brevidade da vida como a certeza da morte. Completando o conjunto de simbolismos da temática temos os motivos artísticos que representavam a passagem do tempo. As ampulhetas. Os cronômetros. As velas apagando-se. Os cachimbos ardidos. As taças de vinho derramadas.  As bolhas de sabão – esferas flutuantes fugazes e fascinantes porque frágeis. Caso houvesse eletricidade, talvez lâmpadas.

Em inglês, o gênero natureza-morta é traduzido comostill life. Se na língua portuguesa esses trabalhos apontam para a morte, é bem verdade que sua tradução na língua inglesa aponta para o que resiste: ainda a vida.

A série de esculturas que tomam partido da forma de lâmpadas industriais é exercitada há vários anos pelo professor Marcos Duarte, de nossa oficina de escultura, um dos vários artistas-professores que compõem as plurais investidas . Muito embora não seja justo ler este trabalho como uma natureza-morta, esta imagem foi uma das que mais partilhamos por este ano. Mirá-la como um sinal da brevidade da vida, da certeza da morte e da instabilidade do futuro são possibilidades. Um grande fundo branco, uma lâmpada sobre a superfície: em vez da transparência do vidro e da luminosidade da eletricidade, vemos uma forma sugerida no carvão. Imaginar outros mundos foi um convite à imaginação coletiva: enxergar na matéria a possibilidade de outras formas se apresentarem. Observar esta forma é, sobretudo, apostar para aquilo que ela sugere.

CUIDADO

É evidente para todos aqueles viventes que estamos em franco enrijecimento das condições materiais de vida. O esgotamento de um modelo econômico baseado numa ideia insustentável de crescimento e expansão, produção e consumo; o aniquilamento da potência de vida do planeta por meio do extrativismo de nossos recursos materiais; a consequente proximidade do esgotamento das condições de vida da humanidade. Não avizinha-se o fim do mundo, mas a nossa possibilidade de existência. No espectro da cultura popular e do entretenimento, não soa exagero perceber que nosso desejo de utopia parece ter encontrado suas alternativas mais realistas em narrativas de distopias. Nosso futuro é desde agora construído pela cultura do espetáculo e do entretenimento com alegorias de zumbis e mortos vivos. A morte já não se projeta em nosso futuro, no fim dos tempos, mas entra no tempo presente, ilumina por quais relações de poder somos compostos. Quem sabe, ao reconhecer a necropolítica de nossos tempos, podemos denunciar e combater a morte que se apresenta como realidade. Não à toa, irrompe a palavra "cuidado" nas pautas dos movimentos sociais e no pensamento crítico da contemporaneidade. O tempo da pós-modernidade, aquele que partilhamos hoje, promete um presente que nos condena. Não a uma promessa de futuro, mas ao tempo que nos resta.

Nas palavras do filósofo camaronês, o conceito da necropolítica desenvolve-se a partir de:

as formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte (necropolítica) reconfiguram profundamente as relações entre resistência, sacrifício e terror. (...) a noção de necropolítica e de necropoder para dar conta das várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, as armas de fogo são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar "mundos de morte", formas únicas e novas de existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de "mortos-vivos".

Durante o ano de 2021, marcado pela crise pandêmica e por uma política cravejada pela morte, a Escola de Artes Visuais do Parque Lage usou sua voz pública para convocar artistas e não artistas; alunos, visitantes ou professores; brasileiros e estrangeiros a imaginar outros mundos. Mortes massivas, mortes administradas. Mortes provocadas de milhares de pessoas, com as quais morrem – ou tentam fazer morrer – sujeitos, famílias, história, futuro e humanidade. Frente à catástrofe humana, às ruínas desiguais de nossa sociedade, quanto pode a arte?

ESTRATÉGIAS CIRCULARES

Afirmar esta energia criadora não é solução para morte. Mas criar não precisa ser a inserção de objetos de alto valor de troca em um mercado em franca especulação. Criar pode ser a administração de nossa energia vital concentrada, pode trazer a consciência de que fazemos, construímos e geramos o mundo em que vivemos. Que nosso tempo é socialmente e coletivamente fabricado. Que o mundo é formado e deformado cotidianamente por nossas mãos e máquinas. Porventura criar possa ser uma maneira de salvar a vida – pois para a morte, ensina-nos a vida, não é.[Prestes a ser publicado, em dezembro de 2021, o Brasil contabiliza 617 mil mortes pela pandemia do Coronavírus].

Nesta mostra final, resultado de um ano em que exercitamos distâncias e presenças em meio físico e digital, habitar a Escola foi sobretudo um exercício de imaginação. Sublinhou-se nesta experiência que fazer Escola está ligado ao território e ao espaço, mas também à relação entre indivíduos e seus desejos de imaginar e realizar juntos. Os trabalhos aqui apresentados não foram selecionados por uma comissão específica a partir de critérios de qualidade ou inovação – palavras tão frágeis quanto usadas em nosso cotidiano. Cremos na livre circulação do pensamento artístico como possibilidade geradora de processos formativos – mais do que na divulgação de resultados bem sucedidos.

IMAGENS CURVAS

Assim como as bolhas de sabão, as imagens nessa plataforma mostram seus ângulos e quinas arredondadas, sugerindo formas em plena expansão. Tal recurso, coincidentemente, foi usado na expografia damostra Hábito–Habitante, pensada pela arquiteta Isabel Xavier, aberta no dia Primeiro de Maio deste ano aqui na Escola, no espaço físico e em uma plataforma digital, como esta. As Cavalariças tiveram seus ângulos arredondados para jogar com a ilusão e a finitude: o fundo infinito. Tal gesto buscou acompanhar a proposta da curadoria: uma mostra que investigou como o cotidiano dos espaços molda, reconfigura, transforma, domestica, adestra, manipula, dá forma a seus habitantes.  Ao pintar as paredes da mostra de verde chroma key, objetivamos, mesmo que por meio de dispositivos digitais, criar uma experiência à distância. Apontar para a explosão dos limites do espaço, mesmo que metafórica. Sugerir que podemos mais.

SER PEQUENO, SONHAR GIGANTE

Imaginar outros mundos, tarefa gigantesca, foi o que elegemos fazer com as crianças nas Jornadas de Outubro deste ano.Nas Jornadas, em alto e bom som, exercitamos o ar em nossos pulmões para gritar nossa coragem de construir um mundo mais justo e solidário. É preciso imaginar outros mundos, outros contornos e afetos para os seres vivos e o planeta, estabelecendo novas formas de conexão – lembraram-nos as crianças. Aqui, nesta plataforma digital, os trabalhos apresentados, tal qualna mostra online do ano passado, valem-se da recombinação constante e da possibilidade fantástica que qualquer imagem guarda em si: propor novas relações e com elas outras possibilidades.

ENTRE O SUJEITO E O OBJETO

Exemplo possível, a lâmpada em carvão aponta para o mundo da criação humana, da manufatura, das ideias. Realizada, no entanto, em combustível fóssil, matéria reconhecidamente natural e ligada a uma longa linha de extrativismos. Uma natureza que não é selvagem, exótica externa. Mas uma massa reconfigurada cotidianamente pela presença de humanos no mundo. O espectro contemporâneo está largamente ligado às tentativas de fazer desaparecer a divisão entre natureza e cultura, uma matriz da segregação que se perpetua há milênios. Capitalismo, colonialidade, patriarcado, escravização, racismo, segregação social, exploração da terra, subsolo e animais - todos são baseados em distinções de status entre sujeito e objeto. Talneurose culturaltem no racismo um de seus maiores sintomas.

ADIAR O FIM DO MUNDO

Neste ano, fomos convocados a mirar novamente para o que guardamos em nosso espaço. Acontecimento triste e simbólico, real e violento, o incêndio da Oca Kupixawa que o Parque Lage guarda relembrou-nos das palavras de Ailton Krenak. Em meio à morte como ordem do dia, criar insubordinadamente, com outras éticas, talvez seja uma das grandiosas ideias que podem adiar o fim do mundo.

A visão moderna foi caracterizada por um futuro que prometia transformar o presente por meio da previsão e do planejamento humanos – agora com a ajuda de inteligências artificiais, robotizadas, não-humanas. Como os algoritmos que combinam sucessivamente esses trabalhos e provocam, a cada acesso, novas vizinhanças, outras possibilidades de relação. Com o esgotamento da modernidade, no entanto, as instituições e operações críticas do contemporâneo oferecem novas configurações de sequenciamento no tempo e história – quiçá um futuro ancestral. Teses como a pós-história, o presentismo ou o cancelamento do futuro diagnosticam nossa condição pós-moderna como a de uma contemporaneidade sem progresso. É impossível encararmos um futuro sem reconhecer uma realidade assombrada pelos fantasmas do passado. Sob novas imagens, persistem. Se o presente nos convoca a questionar quanto podemos alterar nossas realidades por meio da arte e da vida, que o futuro seja uma possibilidade de encarar, com coragem e responsabilidade, o que urge ser deformado.

Em Escola de Artes Visuais do Parque Lage, um sincero e merecido agradecimento àqueles que persistem e insistem em acreditar na educação como um campo em que é possível aprender com a diferença. Em um ano de tantas perdas contabilizadas – e inestimáveis – é preciso reconhecer a resistência que partilhamos ao escolher pensar e fazer juntos. Que em 2022 possamos continuar, indisciplinadamente, a afirmar a vida.

Ulisses Carrilho
Curador
EAV Parque Lage

GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Governador do Estado do Rio de Janeiro
Cláudio Castro

Secretária de Estado de Cultura e Economia Criativa do Estado do
Rio de Janeiro
Danielle Christian Ribeiro Barros

ESCOLA DE ARTES VISUAIS DO PARQUE LAGE

Diretora
Yole Mendonça

Curador de Ensino e Programas Públicos
Ulisses Carrilho

Comissão de Ensino
Camilla Rocha Campos
Charles Watson
Clarissa Diniz
Marcelo Campos
Juca Fiis

Coordenadora de Ensino
Natália Nichols

Secretaria de Ensino
Carmen da Costa Souza
Viviane Sampaio

Coordenadora de Comunicação e Design
Alice Loureiro

Designer
Ingrid Pimenta

Coordenador de Produção
Renan Lima

Produtor
Marcos Pinheiro

Gerente de Eventos
Naldo Turl

Bibliotecária
Rubia Luiza da Silva

Bibliotecária auxiliar
Juliana Machado

Assessora de Imprensa
Mônica Villela

Gerente Administrativo e Financeiro
Celina Martins

Gerente de Patrimônio e Compras
Fabio Augusto Lopes

Supervisor Financeiro Contábil
Hércules da Costa Souza

Analista de Planejamento Financeiro
Leiliane Silva

Supervisora de Administração e Finanças | Secretaria
Camila Oliveira

Analista de Suporte de TI
Talles Moreira Delgado

Manutenção Elétrica e Predial
Homero Gomes
Nilton Madeira

Assistentes de Administração
José Carlos Silva Teixeira
Paulo do Carmo
Paulo Neemias

Assistentes de Serviços Gerais
Liliane Simões
Marcelo da Silva

Gerentes da loja Local
Gabriele Sória
Lucas Lage

Equipe da loja Local
Ana Clara Demier
Fillipe Dionizio

AMEAV

Presidente
Marcelo Viveiros de Moura

Vice-presidente
Eugênio Pacelli de Oliveira Pires dos Santos

Conselheiros
Alvaro Piquet
Gustavo Martins
Carlos Roberto de Figueiredo Osorio
Luiz Eduardo Lopes Gonçalves


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